Martin
Heidegger nasceu na Alemanha, em 26 de Maio de 1889. Considerando este recorte
temporal: de fins do século XIX, data de seu nascimento, até boa parte do
século XX, época de seu falecimento é fundamental perguntar: o que é possível ter vivenciado nesse
período? E como estas vivências poderiam ter acompanhado o pensamento metateórico
deste filósofo? A princípio tentaremos responder a estas perguntas, procurando uma forma de entendê-lo melhor.
O
presente autor fenomenológico-existencialista, certamente sofreu as pressões de
seu tempo. Viveu na época da ovacionada racionalidade, da veneração à técnica,
da propagação avassaladora de um modo de produção – o capitalista – o qual
entorpecia os detentores dos meios de produção com enriquecimento farto, e
subjugava os operários – mão de obra das indústrias –, configurando para ambos um
modo de vida cada vez mais artificializado e distante de uma vivência equânime
de “ser humano”, enquanto encontro de si no outro e de si em si mesmo.
Ele,
de certo modo, conheceu esta realidade conflitante, paradoxal, e provavelmente
foi influenciado a discorrer sobre estas realidades. Seu recurso,
metaforicamente falando, foi um espelho, com o qual propunha contrastar aquilo
que parecia ser com o que realmente era, e estava oculto diante do que se podia
ver. Pretendia ferir, com isso, as concepções individualizantes e
uniformizadoras, concepções estas necessárias para a propagação daquele modelo
“impessoalizante” gestado por dada sociedade industrial e técnica.
Era
sobre isso que Heidegger escrevia: sobre olhar-se no espelho e ver, para além
de sua face, a sua existência, não enquanto coisa dada, mas como algo singular
e único. Ressaltava que, para isso seria necessário mergulhar em si próprio
buscando, diferente da vida ilusória, aparente, aquela verdadeira face de si.
Abria espaços para além da velha racionalidade, uma vez que dava relevo às
vivências e experiências intra-subjetivas, as quais, portanto, estavam
essencialmente embebidas de um caráter puramente sentimental.
A
própria filosofia heideggeriana se propôs a mergulhar em suas próprias ideias
buscando encontrar a verdadeira face do “eu”. Por isso diz-se que a filosofia
dele é ontológica – pois busca nas causas primeiras a existência do seu ‘eu’
mais próprio, do ser que é. Heidegger, ao fazê-la, pontuou a diferença do homem
enquanto ser singular, isto é, diferente dos outros seres, chamando- de Dasein, ou seja, ‘ser-aí’ – como espaço
[lugar] onde o ser se desvela [vivencia] o seu eu (no seu próprio corpo). A
existência, a partir daí, só é dada ao Dasein,
porque, dentre outras coisas, é a partir deste ‘modo de ser’ singular que é
possível estabelecer questões e significados às coisas.
Heidegger
não via este Dasein como um ser fora
de seu contexto formador e por isso o designava como um ser-no-mundo, este mesmo
mundo não só como espaço de pertencimento – de habitação –, mas também como
espaço de vivência com outros Dasein,
espaço de interações, portanto de acordo com o modo de ser primordial do homem:
em suas relações. Afirma-se assim porque não é possível estabelecer a função de
pertencimento consigo mesmo caso não haja a relação de pertencimento com o
conjunto dos outros Dasein, conjunto
esse que legitima e contribui para existência do ser.
Contemplando
aquelas noções de homem, enquanto ser-aí e como ser-no-mundo, a filosofia
heideggeriana estabelece um conjunto de outras noções que embasam e oferecem
subsídio para se pensar este modo singular de “ser” humano. Uma delas é a noção
de cuidado: uma maneira cotidiana específica de habitar o mundo e relacionar-se
com os outros, privilegiando a preservação e a conservação daquilo o qual é
pertencente ao próprio Dasein, mas também a outrem, ou seja, de um modo geral,
de tudo o que concerne à existência.
O
presente filósofo também percebeu que o fenômeno de ser, não era claramente
manifestado, ao menos não de imediato, e o caminho para desvelá-lo é a partir
de uma atividade reflexiva de sua experiência. O que fica nas entrelinhas desta
ideia, e que Heiddeger contempla em sua obra, é de que muito comumente o homem
vivencia sua experiência de maneira impessoal, isto é, não condizente com
aquilo o qual é mais próprio de si, de seu lugar íntimo.
Aliás,
viver impessoalmente era praticamente imperativo naquele contexto
socioeconômico e político no qual o tal filósofo existencialista conheceu, até
porque não seria nada interessante haver sujeitos refletindo sobre sua própria
realidade e sobre como aquela ordem socioeconômica e política as empurrava a
viver de maneira cada vez mais imprópria. Utilizando-se desse prisma, não é
assim que grande parte vivemos em muitos momentos?
A
pergunta que deve ser feita, e a qual, de certo modo, fica respondida por
Heidegger é: por que não questionamos sobre nossa vivência mais própria? O que
nos impele a não fazermos isso? A possível resposta elucidada por ele é de que nos
rendemos à força do hábito, e o fazemos porque nos parece mais cômodo. Veja-se
esta alegoria: um bebê, para reivindicar seu primeiro fôlego de vida acaba
sofrendo e chorando, por sentir o ar expandindo seus pulmões adiabaticamente e,
mesmo que este fato permita ao bebê viver e ser ele, isto causa muita dor.
Semelhantemente acontece com o homem: também sofre ao entrar em questão consigo
mesmo, sente dor ao procurar encontrar sua própria essência. Partindo dessa
ideia é possível conjecturar o porquê de se evitar tanto: é mais confortável
permanecer no modo “automático” o tempo todo.
Não
se diz que isso, entretanto, seja errado (o fato de utilizar-se do hábito). Até
porque é insensato reclinar-se a pensar sobre tudo de si o tempo todo.
Heidegger sabia disso, tanto é que estabeleceu a noção de débito: sempre
devemos a nós mesmos pela incapacidade de realizar todas as possibilidades. E
não há nada de errado com isso. O que é possível – e esperado – que se faça é
demonstrar abertura de sentidos, de possibilidades. Este é, a partir dele, um
modo autêntico de se permitir viver.
Já
dizia Carlos Drummond de Andrade que a “dor é inevitável, mas o sofrimento é
opcional”, e a angústia mostra-se inevitável neste sentido. Entretanto desponta
como crucial no papel de instigar o Ser a assumir a responsabilidade de poder
ser de diferentes maneiras. É a partir dela que nos tornamos capazes de
mergulhar no desconhecido de nós mesmos e assim conhecermo-nos um pouco melhor.
A
abertura feita por este processo de autoconhecimento, ainda que passando por
sensações, ora dolorosas, ora angustiantes, nos leva a alcançar um nível de
confiança em nós mesmos o qual está evidenciado na noção de ‘decisão’ expressa
por Heidegger: enquanto abertura privilegiada, a qual permite suportar
eventuais desconstruções de velhos paradigmas e constituir novos modelos.
Talvez a maior angústia que se possa ter é
acerca de algo realmente indissolúvel. É quando nos sentimos limitados demais,
presos a uma dada circunstância. Se angústia pode ser entendida resultado da
limitação, do encarceramento, certamente somos seres angustiados (se abrirmos
espaço para a reflexão, óbvio), pois, assim como conceituou Heidegger somos
seres-para-a-morte. E esta é algo factualmente irremediável.
E
ainda que seja algo comum a todos os homens, assim como a existência também o
é, cada qual somos capazes de vivenciar de modo singular a morte (não o
morrer). O fenômeno da morte, no sentido trabalhado por Heidegger, parece estar
muito mais atrelado ao sentimento existencial de finitude, e este sentimento
aparece como sendo particular para cada Dasein.
Este
foi Martín Heidegger: um homem que esperava mais de que um mundo técnico,
distante de uma vivência não própria, impessoal. Se não for dizer demais, até diria
que foi um sonhador, pois desejava um mundo onde ser aquilo que Somos estivesse
mais perto de se tornar real.